É claro que isso é considerado uma falha. Os elaboradores do Acordo alegaram que essas palavras eram impossíveis de unificar. Só viam duas soluções possíveis:
- obrigar os brasileiros a escreverem génio mas concêntrico, como em Portugal. Opção já tentada em 1945 e fracassada por resistência dos brasileiros.
- acabar com os acentos, escrevendo Antonio, genio e concentrico. Opção tentada em 1986 e tornada impraticável pela polêmica que despertou.
Mas há uma outra solução possível que não mencionaram. Bastava abrir o livro Ortografia Nacional, que o linguista Aniceto dos Reis Gonçalves Viana escreveu em 1904 e que forma a base da a ortografia que usamos até hoje. Transcrevo um trecho:
Quer elas [vogais nasais antes de consoante] se marquem com o agudo -- acento indicativo geral da sílaba predominante --, ou com o circunflecso -- sinal excepcional das vogais fechadas --, a pronunciação ficará sendo a mesma, conforme os dialectos. Conseguintemente, é preferível a acentuação com o agudo dos seguintes vocábulos, concéntrico, brónzeo, por exemplo, e não concéntrico, brónzeo; e é certissimamente essa acentuação a única admissível numa ortografia que represente a língua geral, e não um dialecto especial, para os vocábulos cándido, ánsia, por isso que, no Minho e parte do Douro, o a antes de nasal é aberto.
[...]conquanto fechadas na Beira, são abertas em outros dialectos, entre êles no de Lisboa; convém pois que se marquem com o sinal geral de acentuação, isto é, o agudo, e não com o circunflecso, que lhes ficsaria o valor, as tónicas dos seguintes vocábulos, e outros análogos: Vénus, génio, gémeo[...] deixando lícito aos indivíduos de cada província pronunciarem conforme os seus hábitos.
[...] O que é mester, repetimos, por ser importantíssimo, é que a ortografia não prescreva preceitos de pronúncia, a não ser nos casos em que êles sejam de aplicação geral, comum a todas as rejiões onde se fala português, como o são as regras relativas á sílaba predominante de qualquer vocábulo, que, com poucas excepções, é comum a todos os dialectos portugueses do reino e do Brasil.
Como se nota, Gonçalves Viana em 1904 tinha muito mais sabedoria do que os reformadores de 1990, com todos os anos de lições históricas que tinham em sua vantagem.
Os elaboradores do Acordo Ortográfico pensaram que não se pode fazer os brasileiros escreverem António com acento agudo, porque a pronúncia do O é fechada no país. Estão errados por dois motivos:
1 - Em São Paulo e Paraná, a pronúncia é aberta. Não obstante, a população escreve essas palavras com acento circunflexo sem problema. Se os paulistas e paranaenses não viram problema em escrever de acordo com outro sotaque de dentro do mesmo país, será que os brasileiros aceitariam escrever de acordo com o sotaque de Portugal? Ou o nacionalismo seria um obstáculo?
2 - Este motivo é mais poderoso. Na palavra Antônio, o O pode até ser fechado foneticamente no Brasil, mas não é fechado fonologicamente. Para os leigos em linguística: isso quer dizer que tanto faz escrever Antônio ou António, porque um brasileiro pronunciaria os dois da mesma forma. Quer uma prova disso? A palavra contém leva acento agudo e é pronunciada identicamente a contêm no Brasil. O E dessas palavras soa igual ao E de gênio. Se contém e armazém têm acento agudo, génio também poderia ter.
O motivo número dois é um pouco problemático para Portugal. Ao contrário do Brasil, naquele país existe distinção fonológica entre vogal aberta e vogal fechada antes de M e N. Um exemplo para os leigos entenderem: no Brasil, as palavras cômoro e cómodo (grafadas à maneira portuguesa) só se diferenciam pelo som do D e do R, porque o O se pronuncia igual (tanto faz aberto ou fechado, é questão de sotaque). Em Portugal, não: eles percebem claramente que o O de cômoro é fechado, e o de cómodo segunda, aberto. Seria ruim para eles escrever cómoro e cómodo. Gonçalves Viana achava que não:
[As vogais] conservam o valor de é, ó abertos antes de m e n seguidos de vogal [...] as excepções mais usuais são sêmea e fêmea, que sem inconveniente poderia também acentuar-se sémea e fémea.
Para Gonçalves Viana não havia inconveniente, mas para os reformadores atuais há. Responderiam a essa proposta com a mesma crítica que fizeram à proposta de 1945: "Esta solução estipulava, contra toda a tradição ortográfica portuguesa, que o acento agudo, nestes casos, apenas assinalava a tonicidade da vogal e não o seu timbre."
Levando isso em consideração, minha proposta é que cômoro, fêmea, sêmea e sêmola tivessem dupla grafia, sendo escritas com acento agudo no Brasil e circunflexo em Portugal. Em compensação, todas as 2426 duplas grafias que existem hoje seriam eliminadas pelo acento agudo. Escreveríamos contemporáneo, cándido, António, génio, ciéncia, ortodóntico.
Estudo de impacto
Se essa proposta tivesse sido posta em prática no Acordo Ortográfico, em vez de 98% das palavras com grafia única, teríamos uma uniformidade perto de 99,5%, estatística igual à prometida pelo Acordo de 1986, que era muito mais radical.
Por outro lado, o número de mudanças a serem assimiladas pela população também seria muito maior. Seriam afetadas muitas palavras que atualmente já são uniformes, como paciência e elegância.
Existe um recurso poderoso que poderia ser usado para diminuir o número de mudanças: em vez de unificar pelo acento agudo, usaríamos o acento circunflexo. Nesse caso, não haveria uma só mudança a mais no Brasil, que já escreve gênio e Antônio com circunflexo. Portugal talvez também tivesse até menos mudanças dessa forma, mas a desproporção em relação ao Brasil, já grande (três vezes mais mudanças para Portugal) ficaria ainda maior. Se hoje já é frequente ouvir críticas de que Portugal estaria se subjugando ao Brasil, as críticas seriam ainda maiores e poderiam inviabilizar o projeto. Foi assim que o Acordo de 1945 fracassou, com os papéis trocados.
É a vida. Se A e B ganham pouco, ninguém reclama. Se A e B ganham muito, mas B ganha um pouco a mais, A não para de reclamar.
O acordo ortográfico foi um fracasso retumbante. Infelizmente. Se o Brasil tivesse cedido 1,5% e portugal outro um em meio, teriamos uma quase unificação e as diferenças ficariam a altura das variantes de inglês. Infelizmente, o português tem sido sumariamente maltratado nos últimos 100 anos por uma quantidade grotesca de reformas. Cabe lembrar que antes de 1912, todo mundo usava a mesma ortografia e viviam muito bem. De repente, a turma parida da semana de arte moderna começou a querer criar uma língua própria, que nem era português nem tupi. Foi suficiente para as acusações, levianas, de uns puristas de Portugal, afirmarem que não falamos português e sim brasileiro.
ResponderExcluirQue texto e pesquisa excelentes!! Meu filho chamar-se-á Antônio em respeito às regras ortográficas ora vigentes no Brasil.
ResponderExcluirQue texto e pesquisa excelentes!! Meu filho chamar-se-á Antônio em respeito às regras ortográficas ora vigentes no Brasil.
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