Duplas grafias e consoantes mudas no Acordo Ortográfico


Introdução

O Acordo Ortográfico veio para unificar a ortografia do português internacionalmente. No entanto, é notório que não foi conseguida uma unificação absoluta. O caso em que há maior variação de grafia, tanto entre os países quanto dentro deles, é o caso das sequências consonânticas CT, PT, CÇ, PÇ. Em muitas palavras, a primeira letra da sequência deixou de ser pronunciada por alguns e continua pronunciada por outros. Um exemplo: característica, às vezes falada caraterística (tanto no Brasil como em Portugal). 

Não há saída: o único modo de conseguir uma grafia unificada para essas palavras seria usar consoantes mudas. É impensável proibir que se escreva uma consoante que ainda se pronuncia, mas já temos longa experiência em escrever consoante que não se pronuncia mais.  


Aqui vão todas as maneiras possíveis de imaginar para usar consoantes mudas na ortografia: 


A - Acção, acto, actual, Egipto. Adotar no Brasil as atuais consoantes mudas portuguesas, inclusive as que ninguém jamais pronuncia, que são de dois tipos: as etimológicas (Egipto, acto) e as que supostamente abrem a vogal precedente (direcção, actor). Solução já tentada e rejeitada, principalmente porque era muito desigual em detrimento dos brasileiros.


B - Acção, ato, atual, Egito. Usar só as consoantes que variavelmente se pronunciam e as que, embora não se pronunciem mais, deixam como vestígio a abertura da vogal precedente. Em acção, o C vestigial abre o A. Em acto não é necessário para isso (o A seria aberto de qualquer jeito, sendo tônico) e só está lá para que a palavra fique combinando com acção. Por outro lado, em actual a vogal é fechada mesmo com o C, que só está lá para combinar com as outras duas palavras e com as outras de mesma etimologia. Pela solução B, escreveríamos ato e atual, eliminando o C que não abre vogal. Egipto também passaria a Egito, já que o P não abre vogal nenhuma e só está lá para combinar com egípcio, de P pronunciado.

Essa solução é o pior dos mundos. Para os brasileiros, é um critério dificílimo, porque eles não têm a menor ideia de qual vogal é aberta em Portugal e qual é fechada.

C - Ação, ato, atual, Egito. Só se escrevem as consoantes que variavelmente possam ser pronunciadas, e pronto. Aí teríamos algumas incongruências etimológicas. O caso Egito-egípcio é famoso, mas não causa problema real, porque todos entendem o porquê de haver P numa palavra e não em outra: o P é sempre pronunciado na segunda, e não é pronunciado na primeira. O pior são outros casos: por exemplo, teríamos que escrever objectar (porque alguns portugueses pronunciam o C) ao lado de objeto (sem C, porque nenhum português pronuncia um C nessa palavra). Imaginem a dificuldade de uma criança aprendendo a escrever: teria que decorar que objectar tem C mudo, mas objecto é uma grafia incorreta, e só objeto é correto. O C vai e vem aleatoriamente, sem contrapartida na pronúncia. 


D - Ação, ato, atual, Egipto. Os brasileiros e os portugueses escrevem as consoantes variavelmente proferidas e também adicionam a mesma consoante em palavras correlatas, para evitar incongruências como as citadas. Aí teríamos Egipto para combinar com egípcio e espectáculo para combinar com espectador.


As soluções C e D são as menos ruins, mas são impossíveis de se aplicar na prática agora. Por quê? Coloque-se no lugar do brasileiro médio. Durante toda a vida dele, ele escreveu e leu teto sem o menor problema. De repente dizem que ele tem que escrever tecto, colocando um C que não tem valor nenhum na pronúncia. Ele nunca ouviu ninguém dizer /tektu/, mas a Academia Brasileira de Letras jura que alguém fala assim (e só ela, porque os dicionários não registram). E neto, vira "necto"?, pergunta o brasileiro médio. Não, continua igual. O brasileiro não sabe mais como escrever qualquer palavra que tenha T ou Ç depois de vogal. Ele não sabe se deve inserir uma consoante muda e, se for o caso, se ela deve ser C ou P. Adotar, adoctar ou adoptar? Só anos de leitura para memorizar todas as palavras. Até lá, o brasileiro que se considerava bem instruído se descobre quase semianalfabeto. O Brasil já tem uma população com problemas nessa área, e se estaria inserindo uma complicação nova.


Se fosse possível voltar no tempo e mudar a ortografia desde que foi estabelecida, a solução D seria a ideal, na minha opinião. Ou ela ou a C. As consoantes mudas atrapalham um pouco a vida da criança que aprende a ler e escrever, mas é um preço pequeno perto do benefício de ter uma ortografia única para o português. A dificuldade, que não é tão grande, existe só no momento do aprendizado; os inconvenientes da duplicidade de ortografia são sentidos em qualquer tempo. 


Mas agora já é tarde. Neste ano, completam-se 70 desde que os brasileiros pararam de escrever consoantes mudas. Ainda se vê uma ou outra em nomes que não se subordinam à ortografia oficial (Victor, Baptista), mas no geral essas consoantes simplesmente não existem na memória visual dos brasileiros. O Acordo não poderia fazer a loucura de trazê-las de volta. Mesmo que se considere essa mudança possível para o povo, ela seria impossível de se aplicar na prática. O Congresso, a imprensa e a opinião pública não permitiriam.  



Acordo extraoficial

Ficamos assim, então. Em torno de 575 palavras, ou 0,5% do total, deixa de ter unidade ortográfica por causa de sequências consonânticas de pronúncia variável. Mas a história não precisa acabar aí.

No que diz respeito à ortografia, nem tudo é definido por comissões e decretos, nem mesmo no português. Você deve saber que a ortografia do inglês nunca teve regulação oficial: ela foi definida pelo uso do povo. E até no português recente, com a ortografia votada por parlamentos, houve espaço para isso.


Do que estou falando? Na ortografia brasileira de 1943, o texto oficial dizia isto sobre o trema: 


Emprega-se o trema no u que se pronuncia depois de g ou q e seguido de e ou iagüentar



Muitas palavras tinham e têm oscilação de pronúncia a esse respeito: líquido, sanguíneo, antiguidade. Pela norma ortográfica, essas palavras tinham trema opcional.

Não era o que parecia para quem lia publicações brasileiras. Parecia mais era que o trema era proibido nessas palavras, porque nunca se usava, nem naquelas em que o U era pronunciado pela maioria das pessoas. Nunca ouvi pronunciarem /sanghíneo/, mas também nunca li "sangüíneo" num livro. O mesmo com "antigüidade". Nenhuma loja do país que eu tenha visto usava trema em "liquidação", embora fosse a pronúncia majoritária.

O que se nota é que se formou uma convenção ortográfica extraoficial: se o trema é opcional, não se usa. Com certeza não eram todos os que seguiam esse padrão, mas que era um padrão, era. 

Do mesmo jeito, é possível estabelecer outra convenção extraoficial, desta vez sobre as sequências consonânticas variáveis. O que a comissão do Acordo não conseguiu fazer pela unificação da ortografia o povo pode conseguir. 

O que o Acordo nos deixou foi um grande número de facultatividades. A sociedade pode usar essas facultatividades de forma inteligente e tapar o buraco deixado pelo Acordo. Faço as seguintes propostas para um Acordo Ortográfico extraoficial:

Base I - Se houver uma só variante em comum entre Brasil e Portugal, deve ser preferida nos dois países. Espetador só existe em Portugal, deve ser preterida em favor de espectador. Excepcional só existe no Brasil, deve ser preterida em favor de excecional.

Base II - Se as duas variantes existirem nos dois países e forem ambas de uso corrente, deve-se dar preferência à que inclui a consoante em variação. Ex.: veredicto e característica preferidos, veredito e caraterística preteridos.

Para aderir a esse Acordo Ortográfico extraoficial, você não precisa assinar nada. Basta usar na sua escrita, a partir de hoje, as variantes sublinhadas abaixo na lista de duplas grafias. São as variantes comuns entre Brasil e Portugal. Use-as e fará uma contribuição para a longeva causa da unidade gráfica da língua portuguesa.


As palavras mais correntes aparecem maiores, para a sua conveniência












Variantes no Brasil






abatista (abaptista)

abjeção (abjecção)
abjecionista (abjeccionista)
adoção (adopção)
acataléptico (acatalético)
aspeto (aspecto)
bissetriz (bissectriz)
característica, caracterizar (caraterística, caraterizar)
circunspeção (circunspecção)
coatar (coactar)
conjetura (conjectura)
defletor (deflector)
desinfetante (desinfectante)
detetar (detectar)
detetor (detector)
epilético (epiléptico)
ereto (erecto)
esmético (esméctico)
espectrofotômetro, espetrofotômetro
espectrômetro, espetrômetro
exator (exactor)
excecional (excepcional)
excecionar (excepcional)
expetorar (expectorar)
fação (facção)
fletir (flectir)
infeção (infecção)
infetar (infectar)
introspeção (introspecção)
ótica (óptica)
respetivo (respectivo)
respetivamente (respectivamente)
secção (seção)
súbdito (súdito) 
subtil (sutil)
suscetível (susceptível)
tática (táctica)




Variantes em Portugal

antisséptico, antissético
  1. asséptico, assético
  2. caráter, carácter
  3. conceptáculo, concetáculo
  4. conceptibilidade, concetibilidade
  5. conceptismo, concetismo
  6. conceptista, concetista
  7. conceptístico, concetístico
  8. conceptiva, concetiva  
  9. conceptível, concetível
  10. conceptual, concetual
  11. espectador, espetador
  12. eclíptico, eclítico
  13. eletropuntura, eletropunctura
  14. espectrofotómetro, espetrofotómetro
  15. espectrómetro, espetrómetro
  16. expectativa, expetativa
  17. fotorreceptor, fotorrecetor
  18. imperfectível, imperfetível
  19. inseto, insecto
  20. intercepto, interceto
  21. interruptor, interrutor
  22. intersectar, intersetar
  23. opticometria, oticometria
  24. perfeccionista, perfecionista
  25. perfectível, perfetível
  26. preceptivo, precetivo
  27. preceptor, precetor
  28. reflectómetro, refletómetro
  29. séptico, sético


Variantes nos dos países










  1. accipitrário, acipitrário  
  2. accipitrídeo, acipitrídeo
  3. accipitrino, acipitrino  
  4. acupunctor, acupuntor
  5. acupunctura, acupuntura
  6. acupuncturação, acupunturação
  7. acupuncturador, acupunturador
  8. acupunctural, acupuntural  
  9. acupuncturar, acupunturar  
  10. ad-rectal, ad-retal 
  11. anictérico, anitérico
  12. anti-ictérico, anti-itérico
  13. apocalíptico, apocalítico
  14. aquapunctura, aquapuntura  
  15. aquapuncturar, aquapunturar
  16. assimptota, assintota  (ambas com ou sem acento)
  17. assimptótico, assintótico  
  18. assimptotismo, assintotismo 
  19. bicaracterística, bicaraterística  
  20. bissector, bissetor
  21. característica, caraterística 
  22. cardiopunctura, cardiopuntura  
  23. circunspectamente, circunspetamente 
  24. circunspecto, circunspeto
  25. conectividade, conetividade  
  26. conectivo, conetivo 
  27. conector, conetor 
  28. consumpção, consunção 
  29. consumptibilidade, consuntibilidade  
  30. consumptível, consuntível  
  31. consumptivo, consuntivo  
  32. consumptor, consuntor  
  33. contráctil, contrátil  
  34. contractilidade, contratilidade  
  35. contractível, contratível  
  36. contractivo, contrativo 55.contracto, contrato 
  37. contractura, contratura  
  38. contracturante, contraturante 
  39. dactilar, datilar  
  40. dactiliográfico, datiliográfico 
  41. dactiliologia, datiliologia  
  42. dactiliológico, datiliológico
  43. dactiliólogo, datiliólogo
  44. dactiliomântico, datiliomântico  
  45. dactilofasia, datilofasia 
  46. dactilografado, datilografado  
  47. dactilografar, datilografar 
  48. dactilografia, datilografia  
  49. dactilograficamente, datilograficamente  
  50. dactilográfico, datilográfico  
  51. dactilógrafo(a), datilógrafo(a)  
  52. dactilograma, datilograma  
  53. dactilólobo, datilólobo  
  54. dactilologia, datilologia  
  55. dactilológico, datilológico  
  56. dactilomante, datilomante  
  57. dactilomântico, datilomântico  
  58. dactilonomia, datilonomia 
  59. dactilóptero, datilóptero  
  60. dactiloscopia, datiloscopia  
  61. dactiloscópico, datiloscópico  
  62. dactiloteca, datiloteca  
  63. dactilozoário, datilozoário  
  64. dactilozoide, datilozoide  
  65. deflectir, defletir  
  66. deflectível, defletível 
  67. deflector, defletor  
  68. deíctico, deítico  
  69. dêctico, dêitico  
  70. didactologia, didatologia  
  71. didactológico, didatológico 
  72. difractómetro, difratómetro
  73. eréctil, erétil  95. erectilidade, eretilidade 
  74. espectador(a), espetador(a)  
  75. espectral, espetral  
  76. espectralidade, espetralidade  
  77. espectro, espetro  
  78. espectrofobia, espetrofobia  
  79. espectrofotometria, espetrofotometria  
  80. espectrofotométrico, espetrofotométrico
  81. espectrografia, espetrografia  
  82. espectrográfico, espetrográfico  
  83. espectrógrafo, espetrógrafo  
  84. espectrograma, espetrograma  
  85. espectrologia, espetrologia  
  86. espectrológico, espetrológico 
  87. espectrometria, espetrometria  
  88. espectrométrico, espetrométrico
  89. espectroscopia, espetroscopia  
  90. espectroscópico, espetroscópico  
  91. espectroscópio, espetroscópio  
  92. espectroscopista, espetroscopista  
  93. estupefactivo, estupefativo  
  94. expectação, expetação 
  95. expectador(a), expetador(a)
  96. expectantismo, expetantismo
  97. expectar, expetar 
  98. expectativa, expetativa  
  99. expectatório, expetatório  
  100. expectável, expetável
  101. expectante, expetante
  102. fototactismo, fototatismo 
  103. galvanopunctura, galvanopuntura 
  104. haptotactismo, haptotatismo  
  105. hidrotactismo, hidrotatismo 
  106. icterícia, iterícia 
  107. ictérico(a), itérico(a) 
  108. ignipunctura, ignipuntura
  109. incaracteristicamente, incarateristicamente
  110. incaracterizado, incaraterizado  
  111. inconsumptibilidade, inconsuntibilidade  
  112. infecto, infeto  
  113. infectocontagioso, infetocontagioso  
  114. insectífero, insetífero  
  115. insectiforme, insetiforme  
  116. insectívoro, insetívoro  
  117. insectófilo, insetófilo 
  118. insectologia, insetologia  
  119. insectológico, insetológico  
  120. insectologista, insetologista  
  121. intáctil, intátil  
  122. intactilidade, intatilidade  
  123. intersecção, interseção  
  124. interseccional, intersecional  
  125. interseccionismo, intersecionismo
  126. intelecção, inteleção
  127. láctico, lático 161. liquefactivo, liquefativo 
  128. multissectorial, multissetorial 
  129. narcoléptico, narcolético 
  130. noctívago(a), notívago(a) 
  131. opticidade, oticidade
  132. punctura, puntura  
  133. putrefactivo, putrefativo 
  134. quimiotactismo, quimiotatistmo 
  135. rarefactibilidade, rarefatibilidade  
  136. rarefactível, rarefatível  
  137. rarefactivo, rarefativo  
  138. rectal, retal  
  139. reflectografia, refletografia  
  140. reflectográfico, refletográfico  
  141. reflectométrico, refletométrico
  142. retráctil, retrátil  
  143. retractilidade, retratilidade  
  144. retractivamente, retrativamente  
  145. retractivo, retrativo  
  146. retracto, retrato  
  147. sector, setor  
  148. sectorial, setorial
  149. septuplicar, setuplicar  
  150. séptuplo, sétuplo  
  151. subicterícia, subiterícia  
  152. subictérico, subitérico 
  153. subsector, subsetor  
  154. tacticografia, taticografia
  155. tacticográfico, taticográfico 
  156.  tacticógrafo, taticógrafo  
  157. táctil, tátil  
  158. tactilidade, tatilidade
  159. tactilmente, tatilmente  
  160. tactismo, tatismo  
  161. telespectador(a), telespetador(a) 
  162. termotactismo, termotatismo 
  163. tigmotactismo, tigmotatismo  
  164. trissectriz, trissetriz  
  165. trofotactismo, trofotatismo 
  166. uretorrectal, uretorretal 
  167. vaginorrectal, vaginorretal  
  168. venipunctura, venipuntura  
  169.  veredicto, veredito  
  170. vesicorrectal, vesicorretal 
  171.  zigotactismo, zigotatismo



Agradecimentos à página acordo-ortografico.blogspot.com.br, cuja compilação de duplas grafias em Portugal foi fundamental para a elaboração da lista que aparece aqui.

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