Falámos ontem, falamos agora

Uma das diferenças entre o português brasileiro e o de Portugal que, contrariando sua razão de ser, o Acordo Ortográfico não eliminou, é o uso de acento agudo em palavras como falámos, andámos, noticiámos. Os portugueses escrevem esse acento porque realmente pronunciam o A aberto nessas palavras, que estão no pretérito. Quando os verbos estão no presente, a pronúncia (e em consequência a escrita) é como a brasileira: falamos, andamos. "Trabalhámos ontem, descansamos amanhã." Eu considero essa a divergência mais séria entre as que sobraram, porque é a mais complexa.

O argumento para a manutenção dessa diferença foi que já se tentou eliminá-la em 1945 e não deu certo, o que levaria à conclusão de que nesse caso não se pode tornar a escrita igual se as pronúncias são diferentes.

No entanto, conforme relato de Antenor Nascentes, os brasileiros antigamente (1922) escreviam como os portugueses, apesar de não falarem como eles. Escreviam "falámos ontem, falamos agora", embora falassem (e continuem a falar) "falâmos ontem, falâmos agora". Nas escolas, os professores equivocadamente diziam aos alunos que a maneira correta de falar era \falámos\, como a escrita sugeria, embora ninguém falasse dessa forma na vida cotidiana. E hoje mesmo tem milhões de portugueses do norte que falam sempre \falâmos\, assim como os brasileiros, e mesmo assim escrevem falámos.

Ou seja, é mentira que fosse impossível unificar a grafia de falámos. Até mesmo a reforma de 1986, radical como ela era (abolia a maioria dos acentos), se absteve de resolver essa divergência; assim como o Acordo que acabou passando, propunha a dupla grafia. 

A escrita brasileira no passado era, portanto, idêntica à de Portugal, e o que separou as duas foi não uma necessidade linguística, mas a pura incompetência das academias, que promulgaram reformas sem cuidado. Esses erros tiveram que ser parcialmente corrigidos agora em 2009, não sem custo aos brasileiros e portugueses. 

Como poderíamos resolver esse problema? Eu proporia tirar o acento de falámos e adicionar outro à forma do presente do verbo: "Trabalhamos ontem, descansâmos amanhã". "Falâmos" refletiria a pronúncia da palavra em toda a lusofonia, de modo que não haveria problema em usar esse acento onde quer que fosse, inclusive no Brasil. Já a forma do pretérito, "falamos", ficaria sem acento e serviria igualmente às duas pronúncias: \falámos\, no sul de Portugal, e \falâmos\, no norte e no Brasil. Por que é que isso nunca foi proposto? 

"Batêmos" e "comêmos" poderiam levar acento também, embora a pronúncia \batémos\ e \comémos\ não exista em Portugal (nesse caso, a pronúncia é a mesma para o presente e para o futuro) . Do contrário, os brasileiros e até os portugueses teriam trabalho a mais para aprender que "falâmos" teria acento mas "batemos" e "comemos" não. O acento aí não serviria para diferenciar uma pronúncia, e sim distinguir o significado na escrita, desfazendo ambiguidades. Por exemplo: "Prometemos ajudar" pode ser ou uma promessa para o futuro, ou uma constatação de que se fez promessa no passado. A única dúvida seria usar ou não acento em fazemos, temos e vemos, que não se confundem com fizemos, tivemos e vimos

A Academia de Ciências de Lisboa jurou que o acento em "trabalhámos" era só diferencial e que não tinha nada a ver com a pronúncia, mas não escreveram *batémos, porque isso não correspondia à pronúncia de Lisboa. Se fosse para haver um acento diferencial verdadeiro (o que seria útil, como já mostramos), teria que ser o acento circunflexo: "Trabalhamos ontem, descansâmos e bebêmos hoje". Além de eliminar uma ambiguidade, teríamos uma grafia única para Brasil e Portugal. 

Mas não. O espírito das academias hoje é só tirar acentos, nunca colocar novos. Então continuamos com essa realidade: falámos em Portugal, falamos no Brasil. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário