Exclusivo: os últimos retoques no Acordo Ortográfico

Tive acesso a um anteprojeto do Acordo Ortográfico datado de 1988, dois anos antes da versão que agora tem valor de lei em vários países. Quando comparamos esse protótipo com o texto atual, percebemos pequenas mudanças que revelam um poucochinho da história não contada do Acordo Ortográfico.

O que é exclusivo deste blogue não é o texto do anteprojeto, que pode ser acessado livremente por este link:
O que é exclusivo aqui é a comparação entre os dois textos e a análise da possível motivação dos reformistas.

As alterações que encontrei foram as seguintes:

1 - Propunha-se retirar o acento de dêmos, então obrigatório em Portugal para o presente do subjuntivo do verbo dar. Em contrapartida, o pretérito perfeito do mesmo verbo ganharia um novo acento opcional e se tornaria "démos". Assim, ficaria mais coerente com outras formas do pretérito como "andámos" e "falámos". Devem ter abandonado a proposta porque demos (que seria escrito "démos") nem sempre é falado com E aberto em Portugal: em algumas regiões, o E é fechado. A mudança proposta acentuaria a divergência, em vez de ficar no que é comum. Como acabou a história: o acento em dêmos continuou, mas, de forma mentecapta, foi tornado opcional, já que os brasileiros não o usam. Melhor seria obrigar o Brasil a usá-lo, e assim todos escreveriam igual. É esse, afinal, o propósito de todo o Acordo.


2 - Seria obrigatório acentuar fôrma; na versão final do Acordo, ficou apenas opcional. Esse acento tinha sido abolido tanto da ortografia brasileira quanto da portuguesa. Foi restaurado, indo na contramão da tendência de cortar acentos. Deve ter sido restituído porque, no Brasil, vários dicionários simplesmente desconsideravam a norma oficial e grafavam "fôrma" por convicção de que devia ser assim. O Acordo tornou essa prática oficial, mas não teve a coragem de torná-la obrigatória.


3 - Crêem, dêem, lêem e vêem continuavam com acento circunflexo no primeiro E. Não havia nesse caso divergência entre Brasil e Portugal, o que explica que não tenham  inicialmente pensado em fazer a mudança. Foi só mais para o final que decidiram tirar o acento, percebendo que era dispensável. Se você quiser saber por que havia acento nessas palavras (há um motivo), clique aqui.

4Vou postar direto o que o texto antigo dizia:



Em certas contrações próprias da linguagem familiar ou popular, como acontece no caso da combinação das preposições a e para (reduzida a pra) com as formas do artigo ou pronome demonstrativo o: ò (de a+o), òs (de a+os). Prò (de pra+o), pròs (de pra+os), prà (de pra+a), pràs (de pra+as).

Ou seja, "para a" viraria "prà" em vez de "pra". Em vez de "vem pra rua", escreveríamos "vem prà rua". Os portugueses já escreviam assim, e os brasileiros passariam a escrever igual. 
Por que mudaram de ideia? Devem ter se lembrado da quantidade absurda de erros de crase que os brasileiros cometem ao escrever. Imagine quantos erros a mais haveria se esse novo acento fosse introduzido? Optaram então pelo caminho da simplificação e suprimiram esse trecho.
Antes, o Brasil cederia a Portugal e adotaria um novo acento. No fim, Portugal cedeu ao Brasil e o acento foi implicitamente eliminado.
Nos dois países sempre houve quem ficasse revoltado se pensasse que o seu estivesse cedendo mais. Mas o fato é que, no Acordo Ortográfico, quando foi preciso escolher entre um e outro, escolheu-se sempre o que fosse mais simples, doa a quem doer. O mais simples, no caso, era tirar o acento de "prà" e "prò".


5 - Esta mudança foi para pior. Trouxe o item mais confuso do Acordo. Lia-se antes: 

Certos compostos, em relação aos quais se perdeu a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, pontapé, etc.

Essas três palavras, listadas aí como exceções à regra, já eram escritas assim, nada mudava. O artigo, então, só servia para reconfortar, mostrando o que ficava igual. Não chamava a atenção. 
Até que alguém, por motivos até hoje mal-explicados, resolveu adicionar arbitrariamente três palavras à lista, e ficou assim:

 Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedista, etc.

 Adicionaram "em certa medida" para relativizar ainda mais o julgamento e mudaram a grafia de palavras escolhidas. O caso de "paraquedista" é justificável, porque "pára-quedista" é uma grafia estranha e sem nexo. Mas o que havia de errado com "manda-chuva"? 
O problema mesmo foi manter o "et cetera" no fim do artigo. Isso só cabe quando há um padrão claro do qual podem ser depreendidos novos exemplos. Mas o padrão que havia foi rompido com a inserção das novas palavras. Todos os analistas ficaram confusos, sem ter como saber se havia alguma outra alteração ortográfica arbitrária escondida naquele "etc.". Se "pára-quedas" perdeu o hífen, como fica "pára-brisa"?
(Resposta: as palavras que não foram explicitamente citadas não sofreram alteração. Temos então para-brisa e para-lama.)


6 - Nos artigos dizendo em quais casos se usa letra maiúscula, havia este trecho, que foi eliminado: 

Nos nomes que designam domínios do saber, quando tomados em sentido absoluto como equivalendo assim a nomes próprios: a Linguística, a Matemática, a Medicina.

 Não imagino qual foi o motivo para tirar este item, mas não foi má mudança. Continuou havendo um item separado dizendo que os nomes de disciplinas são em minúscula ou maiúscula opcionalmente (aula de matemática ou aula de Matemática).




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